Centralismo e democracia
(julho, 1993)
Daniel Bensaïd
Tradução de Luciana Villani das Neves
Revisão de Pedro Barbosa
Georges Marchais propôs ao Partido Comunista Francês – PCF abandonar o centralismo democrático, sem precisar muito o que poderia substituí-lo. Ao invés de abolir o regime burocrático no seio do partido, não é antes uma questão de melhor adaptá-lo às exigências da mídia e do parlamentarismo?
“Que tipo de organização atende às expectativas de um partido para os homens e mulheres de hoje? Sejamos diretos: não penso que a resposta a essa questão possa ser o centralismo democrático (...). Eu não confundo esse conceito com a sua desnaturação stalinista, que nos acompanhou durante todo um período e que extirpamos de nosso funcionamento. Eu o compreendo pelo que ele é: um princípio que me parece corresponder a uma concepção de combate revolucionário que nós deixamos para trás”. Nesses termos, Georges Marchais pessoalmente (seu relatório foi apresentado “a título pessoal”) se despediu do centralismo democrático durante o último comitê central do Partido comunista, no último 16 de junho. Os oradores frequentemente voltam ao assunto. A imprensa convenientemente ressaltou o acontecimento. Ao ler o relatório e a ata da discussão, é de qualquer maneira difícil saber do que se trata de fato.
Depois da grande falsificação stalinista e dos paradoxos da “novlangue”[1], as palavras “centralismo democrático”, assim como “ditadura do proletariado”, possivelmente se tornaram impronunciáveis. Essas não são as únicas palavras patológicas do vocabulário. O que ficou do “socialismo” após o uso feito por Noske, Mollet, Mitterrand e outros? Do “comunismo” após Stálin, Pol Pot, Ceaucescu? Do “internacionalismo” depois das intervenções blindadas em nome do “internacionalismo socialista”? Se forem um obstáculo ao significado, as palavras podem ser abandonadas. No entanto, não deixaremos de pensar com palavras, mesmo sabendo que elas jamais são seguras e que não permanecem intactas.
Se bem que essas disputas acerca das palavras sempre mascaram um pano de fundo estratégico. Não é por acaso que Georges Marchais, em seu relatório, aproximou a liquidação verbal do centralismo democrático feita em 1993 daquela [liquidação verbal] da ditadura do proletariado feita em 1976. O aggiornamento[2] linguístico vai para além do simbólico. O abandono da ditadura do proletariado pelo Partido Comunista não foi o sinal de uma guerra impiedosa contra as ditaduras burocráticas realmente existentes. Continua-se, em nome do balanço “globalmente positivo”, a se acomodar com Brejnev, Husak, Jaruselski e Ceaucescu. A liquidação do conceito não foi mais do que um adeus oficial à luta revolucionária contra a ordem existente em prol da reforma respeitosa do Estado burguês sob o signo do Programa Comum. Sabemos qual foi o resultado.
Da mesma forma, toda essa abolição simbólica do "centralismo democrático" não se destina a derrubar o regime burocrático no seio do partido, mas somente a oficializar a renúncia a um partido de combate para melhor adaptar-se às instituições midiáticas e parlamentares.
Eu retiro o centralismo, sobra a democracia?
O que incomoda Georges Marchais no: "centralismo democrático"? É que, disse ele muito claramente, o centralismo: "Por mais democrático que seja, todo centralismo desempenha um papel essencial no centro e, dentro de um partido onde a direção é denominada comitê central, podemos ver bem onde o centro se situa”. Não é suficiente então suprimir a palavra para dissolver a questão.
Acabou o centralismo? Abaixo o comitê "central". Que sobrará? dele? O "secretário geral"?
Como diria Georges, no secretário geral, há "general"[3]: podemos ver bem onde a hierarquia se situa. Precisaria então, para seguir a lógica, suprimir também o secretário geral e criar um comitê... diretor, ou nacional, ou supremo?
Mas pode-se temer que "diretor" ou "nacional" sejam apenas pseudônimos da centralização tão rapidamente liquidada.
É decididamente difícil escapar desse fato mais que teimoso, limitado: em um poder organizado de Estado, tudo é centralizado. Os jornalistas que são as gargantas quentes de fogo do “centralismo democrático” devem se perguntar sobre o centralismo plebiscitário da 5ª República, sobre o centralismo hierárquico dos nossos exércitos, sobre o centralismo burocrático da nossa mídia, sobre o centralismo patronal das nossas multinacionais. Vocês conhecem um partido mais centralizado que a TF1, Libération, Peugeot ou EDF[4]? Nossa Assembleia nacional não é o “comitê central” da burguesia quando vota as leis Pasqua, quando suas modalidades de eleição eliminam as minorias, quando o mecanismo de escrutínio majoritário dá 80% dos deputados para 25% dos votos?
Não nos livramos mais facilmente do centralismo, e nem asseguramos a democracia, ao riscar o termo. Pegue o “centralismo democrático”. Eu tiro o centralismo. O que resta? A democracia em si mesma, sem adjetivos, responde o imperturbável Georges. A imprensa culta saudou essa subtração rigorosamente lógica relembrando as profecias de Léon Blum durante o congresso de Tours. Oficialmente o Partido Socialista, de fato, não é então centralista (embora no “primeiro secretário” exista “primeiro” e “diretor” no comitê diretor). É, portanto, democrático? Para responder, veja o congresso de Rennes, a guerra entre os chefes, o putsch rocardiano, a divisão da Fen[5] organizada pelos dirigentes socialistas. Os Verdes e a Geração ecologia não são oficialmente centralistas. São, portanto, democráticos? É preciso perguntar aos candidatos que foram muitas vezes impedidos de entrar no partido por uma comissão examinadora com base em sua “bio”[6], aos militantes suspensos ou excluídos de acordo com procedimentos administrativos, àqueles que denunciam o bonapartismo burocrático de Brice ou de Antoine.
A centralização não é necessariamente burocrática. A descentralização pode ser.
Às fontes da burocratização
O centro do problema não está no centralismo, mas na burocratização. Ela não é o produto de uma forma (a forma partido, a forma sindicato, mas também a forma empresa, a forma administração, a forma associação...). Ela provém antes de tudo de uma relação social, da divisão do trabalho propícia ao monopólio e ao confisco do poder, da generalizada cisão em dois (entre economia e política, homem e cidadão, privado e público) propícia à autonomização dos dirigentes diante dos dirigidos. Ou seja, certos modos de organização podem favorecer ou, ao contrário, frear essa tendência. Seria ilusório pretender abolir os “perigos profissionais do poder”, exceto ao se recorrer à hipótese limite da abundância e da extinção total da divisão do trabalho. Trata-se, então, de os conhecer e compreender para melhor controla-los.
Marchais propõe a supressão do centralismo democrático. Para substituí-lo pelo quê? A democracia? Mas de novo? O direito de abrir a boca pode ser considerado como um progresso em um partido onde ela foi por muito tempo mantida fechada. Constitui, no entanto, uma concepção muito mínima de democracia, não indo além do direito (plebiscitário mais do que democrático) de ser apenas sondado! O direito de se fazer ouvir já seria melhor. Implica meios de expressão coletivos e não somente individuais. As correntes, as tendências? Muito pouco preciso quanto ao futuro do secretariado geral ou de uma eventual presidência do partido, Georges é ao menos categórico sobre esse ponto: “Talvez alguns se perguntem: mas o que propomos então? As correntes e as tendências organizadas? Eu responderei por mim: não, porque esteve abundantemente demonstrado que tal funcionamento não é democrático.” O direito de tendência não é certamente uma panaceia. Ele é, de todo modo, uma garantia não suficiente mas necessária para um funcionamento democrático. Parafraseando Georges Marchais: “Foi abundantemente” demonstrado que a sua supressão foi sempre um remédio pior que a doença. Em 1921, no Partido bolchevique, ela certamente não engendrou, mas sem dúvidas favoreceu a ascensão da burocracia stalinista.
O pluralismo nas ações
“É da democracia, do progresso democrático real, efetivo e verificável de nosso funcionamento de que deve se tratar”, diz Marchais em seu relatório. Nessa questão, o critério de verdade não reside no sacrifício simbólico de uma fórmula ritual, mas na prática. A começar por dois desafios.
Primeiramente, o pluralismo de opinião é dali em diante reconhecido no Partido comunista. Para que possam reunir suas opiniões, elaborar proposições, buscar convencer, os militantes devem usufruir, como um recurso, do direto de tendência. O pluralismo individual, é o reino das sondagens [enquetes], do despotismo esclarecido e do plebiscito. Não há pluralismo democrático a menos que seja organizado.
Em segundo lugar, a questão principal não é a do centralismo. É sempre necessário centralizar a experiência para extrair as lições compartilhadas. Uma má descentralização pode levar ao oposto do resultado anunciado: trocar um direito de experimentação local contra uma maior autonomia da direção central que (com ou sem palavra) não desaparecerá.
Por outro lado, o teste prático do comportamento democrático de um partido reside antes no respeito que ele manifesta diante das organizações de massa (sindicatos, associações, movimento de mulheres), pelo seu pluralismo e sua soberania. Nesse ponto, no que diz respeito ao Partido comunista, tudo ainda está por ser feito.
Rouge no 1551, 15 de julho de 1993.
* Tradução de Luciana Villani das Neves – Pós-graduada em História, Sociedade e Cultura (PUC/SP) e Professora do Ensino Fundamental I da Rede Estadual Paulista.
[1] N.T.: O autor faz referência ao romance “1984” de George Orwell, em que uma Nova Língua foi criada com fins de manipulação.
[2] N.T: É um termo italiano que significa “atualização”, foi utilizado como palavra-chave enquanto objetivo para o Concílio do Vaticano II.
[3] N.T.: O autor usa um trocadilho com a palavra “général” que na Língua Francesa pode significar: geral e general.
[4] N.T: TF1 é a maior emissora de TV francesa; Libération é o jornal de maior circulação; e EDF é a maior produtora e distribuidora de energia na França.
[5] N.T.: Fen: Federação de Educação Nacional.
[6] N.T.: Bio aqui quer dizer biografia, no sentido pejorativo, história de vida baseada em fofocas.
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