Reavaliando a biografia de Stálin escrita por Trótski
John Riddell
Tradução de Julia Campos
Revisão de Pedro Barbosa
A nova edição da biografia de Josef Stálin escrita por Leon Trótski, publicada em 2016 pela editora Wellred Books, é uma contribuição significativa para o nosso entendimento do pensamento de Trótski nos últimos anos antes de seu assassinato em agosto de 1940 [1].
Este belo e abundantemente ilustrado volume de 890 páginas, cuidadosamente preparado por Allan Woods e um time de colaboradores, apresenta todos os textos de Trótski coletados para seu estudo nunca finalizado, Stálin: uma avaliação do homem e de sua influência [Stalin: An Appraisal of the Man and His Influence]. Este livro é também um tributo à coragem pessoal e à integridade histórica de Trótski em avançar num estudo tão ambicioso e difícil mesmo enquanto Stálin mobilizava os recursos do Estado Soviético para assassinar testemunhas, suprimir evidências e desenvolver suas conspirações letais para acabar com o seu biógrafo.
O trabalho de Trótski consiste em duas partes bem diferentes:
– Os primeiros sete capítulos, cobrindo os anos até 1917, foram redigidos e revisados por Trótski como um manuscrito contínuo.
– O resto do livro consiste em fragmentos de textos e documentos montados por Trótski para o resto dos capítulos que ele foi impossibilitado de completar.
Uma versão inicial e não-autorizada de seu trabalho foi publicada em 1946 pela Harper & Bros., traduzido e editado por Charles Malamuth [2]. Deu origem tanto a protestos como confusão. Malamuth incluiu os capítulos dos anos até 1917 essencialmente como preparados na forma de rascunho por Trótski, e esta parte é reproduzida por Woods com poucas alterações. Na segunda metade da edição de 1946, entretanto, Malamuth selecionou uma parte dos textos ainda fragmentários de Trótski e os preencheu com extensas interpolações entre colchetes, o que em um capítulo chegou a constituir 62% das palavras contadas.
Os co-pensadores de Trótski defenderam que as adições de Malamuth foram “uma oposição direta às próprias ideias de Trótski”. A viúva de Trótski, Natalia Sedova, protestou vigorosamente contra essa “violência nunca antes vista cometida pelo tradutor contra os direitos do autor” – porém, sem sucesso [3].
As objeções se focavam em dois conceitos presentes nos comentários de Malamuth que contradiziam as visões de longa data de Trótski. Estes conceitos eram: (1) que o stalinismo era a consequência inevitável do bolchevismo; e (2) que a União Soviética sob Stálin não era mais, em nenhum sentido, um estado operário.
Em 1946, era difícil ter certeza sobre as intenções de Trótski em relação a esses pontos, dado que muito do que ele escreveu na preparação deste volume não estava acessível. Mas a edição de Alan Woods agora fornece a totalidade dos escritos de Trótski para este projeto. As duas questões levantadas lá atrás em 1946 podem agora ser revisitadas.
Mas antes de abordar estas questões, examinaremos brevemente a nova edição em termos de seu objetivo declarado de avaliar Stálin como pessoa e líder político.
A avalição de Isaac Deutscher
O grande historiador marxista Isaac Deutscher incluiu uma avaliação da primeira edição (Malamuth) no volume 3 de sua renomada biografia de Trótski. Mais ou menos 50 anos atrás, eu li os dois livros juntos. Os apontamentos de Deutscher naquela época pareciam, para mim, bem feitos [4].
Deutscher disse que dada a forma como o livro foi composto, por uma massa de fragmentos diversos, ele inevitavelmente carecia da “maturidade e equilíbrio das outras obras de Trótski” e incluía “muitas declarações provisórias e exageradas”. A incansável pesquisa de Trótski dentro de “cantos e recantos” da vida de Stálin – Deutscher continuou – pareceu revelar que o notório açougueiro ("Caim") dos grandes expurgos “estava lá todo o tempo”, mesmo em seus dias de estudante.
Entre os cantos e recantos dos capítulos iniciais de Trótski há citações de outros escritores referindo-se à hereditariedade étnica de Stálin: a “crueldade asiática” de sua terra natal; seu povo georgiano que é “desleixado e indolente” e “grosseiro, rude”. Deutscher citou isto como evidência da pesquisa minuciosa de Trótski. Para os leitores de hoje, elas são ofensivamente orientalistas em seu espírito [5].
Deutscher lamentou a ausência de uma clara delimitação na representação da vida de Stálin entre a “potencialidade de um ato criminoso” e a sua “realidade... O monstro não se forma, cresce e emerge – ele está lá, totalmente formado, desde o início”.
Todos estes pontos soam verdadeiros. Mesmo assim, Deutscher admite que Trótski teria enfrentado essas deficiências se tivesse tido a possibilidade de completar o seu trabalho. Por exemplo, ele sem dúvidas teria reconsiderado [lingered over] a ausência de uma explicação convincente do porquê Stálin se juntou ao movimento marxista revolucionário, em uma época em que isto prometia tão pouco em termos de influência ou recompensas.
O caráter de Stálin e sua evolução
Trótski enfatiza a obscuridade de Stálin e sua falta de importância no partido bolchevique ao longo de 1917. Ainda que dispersos na exposição de Trótski, há detalhes não explicados que sugerem um quadro diferente.
Por exemplo, Trótski destaca que Stálin era relativamente desconhecido no partido bolchevique em 1917, mesmo assim menciona sem comentários que Stálin ficou em terceiro na votação para o Comitê Central [CC], na conferência do partido bolchevique de abril de 1917. Após tal conferência, Trótski nos conta que Stálin “praticamente desapareceu do cenário e raramente era visto”. Mesmo assim, em agosto o CC votou por uma liderança bolchevique agora qualitativamente expandida (Trótski e seus co-pensadores agora eram membros) em que Stálin ficou em sétimo [6].
Tais contradições refletem a pesquisa consciente de Trótski e a intervenção do assassino de Stálin que impediu o escritor de transformar essa matéria-prima em um todo consistente.
A representação de Stálin na nova parte deste livro, que lida com o período após outubro de 1917, é mais cativante e convincente do que aquela sobre seus anos iniciais. Trótski diz que “[a] revolução então se [encontrou] no lugar de um devedor falido”, que fez promessas às massas trabalhadoras que as circunstâncias objetivas impediam de cumprir. Isto gerou tensões sociais expressas na cultura e perspectiva burocráticas, analisadas vividamente e de forma persuasiva no texto de Trótski.
“Stálin começou a emergir... como o organizador, o designador de tarefas, o distribuidor de trabalhos, o treinador e mestre da burocracia”, diz Trótski. A crescente burocratização no novo Estado Soviético ofereceu a oportunidade para a “firmeza de caráter e estreiteza de perspectiva” de Stálin, sua busca obstinada [single-minded] por poder e, finalmente, sua crueldade egoísta [7].
A narrativa de Trótski termina essencialmente em 1928. O papel de Stálin na coletivização forçada, na industrialização soviética e nos grandes expurgos conspiratórios são mencionados apenas brevemente.
Contudo, esta nova edição do manuscrito biográfico de Trótski, considerado como um todo, fornece uma imagem mais satisfatória do caráter de Stálin do que o texto disponível para Deutscher.
O bolchevismo levou ao stalinismo?
Muitas vezes tem-se alegado que a estrutura e os métodos do bolchevismo antes de 1917 forneceram o canteiro para o desenvolvimento posterior do stalinismo.
O argumento de Trótski na primeira metade do livro fornece alguns fundamentos para esta especulação. Stálin, antes de 1917, era um “homem de comitê” [committeeman] por excelência, diz Trótski, um pragmático [praktik], um empirista político, que “reagiu com indiferença e, posteriormente, com desprezo pelos emigrados”, ou seja, pelo “centro estrangeiro” constituído por Lênin e seus camaradas próximos no exílio.
Trótski também retorna nestes capítulos à sua conhecida crítica de 1904 de Lênin e do bolchevismo, Nossas tarefas políticas [Our Political Tasks] [8]. Este panfleto foi “razoavelmente preciso” ao dizer que “os homens do comitê [bolchevique] daqueles dias haviam ‘abandonado a necessidade de confiar nos trabalhadores depois de terem encontrado suporte no princípio do centralismo’”.
Aqui, a opinião de Trótski deve ser confrontada com a amplamente respeitada análise de Lars Lih do debate de 1904 entre os socialistas russos em Lênin redescoberto [Lenin Rediscovered], que desafia a precisão das observações de Trótski em 1904 [9].
Apontando para a declaração de Lênin em 1905 de que “evidentemente há uma doença no partido”, Trótski então comenta: “Esta doença era a prepotência da máquina política, o início da burocracia”. Alguém poderia inferir que tal burocracia, a própria essência e o terreno fértil do stalinismo, já era uma doença maligna no bolchevismo de 1904 [10].
Mas ao ler as palavras de Trótski, deve-se ter em mente o contexto. Os líderes locais bolcheviques sob o czarismo – os “praktiki” – não eram oficiais carreiristas privilegiados. Eram ativistas fugindo de uma repressão severa e implacável. Trótski relata que eles gastavam, em média, metade de seu tempo detidos pela polícia. Extremo cuidado em consultar e selecionar colegas era uma necessidade da “konspiratsiia” – regras para sobreviver na clandestinidade revolucionária.
A ascensão das lutas de massa dos trabalhadores em 1905 aliviou a pressão da ilegalidade e permitiu que o partido funcionasse mais democraticamente e inclusivamente. Lênin esteve entre os primeiros a ver isso e pressionou fortemente por mudanças. E o partido mudou, somente para suportar um novo ataque da repressão czarista em 1907 e depois.
Em outro lugar na sua biografia, Trótski declara que a máquina política do partido bolchevique antes de 1917 era “pequeno-burguesa na sua origem e condições de vida” e que Stálin “expressava as inclinações conservadoras da máquina partidária”. Na visão de Trótski, durante as semanas após a revolução russa de fevereiro de 1917, o ímpeto conciliador deste aparato estava levando o partido rumo à liquidação nos mencheviques. O partido foi então resgatado somente pela chegada de Lênin, a quem Trótski chama de “o líder de gênio” [11].
Mas 400 páginas depois, na segunda parte da biografia de Trótski, encontramos uma seção mais elaborada e polida intitulada “stalinismo vs. leninismo” que repete observações gerais sobre as deficiências do aparato bolchevique, mas chega a uma conclusão bastante diferente. Aqui Trótski repudia seu panfleto de 1904 e afirma que os bolcheviques atingiram um equilíbrio frutífero entre democracia e centralismo [12]. Ele então explica como forças exteriores (o bloqueio e a invasão imperialistas, a guerra civil, a desorganização econômica, a extrema escassez) desorganizaram este equilíbrio:
“A violação deste equilíbrio não era um resultado lógico dos princípios organizacionais de Lênin, mas a consequência política da mudança na correlação de forças entre o partido e a classe. O partido se degenerou socialmente, tornando-se a organização da burocracia. O centralismo exagerado se tornou um meio necessário de autodefesa.
O centralismo revolucionário foi transformado em centralismo burocrático. O aparato, que não pode nem ousa apelar às massas para resolver conflitos internos, é compelido a procurar um poder superior, pairando acima de si. É por isso que centralismo burocrático leva inevitavelmente a ditadura pessoal”. [13]
Aqui nós temos a visão equilibrada de Trótski, consistente com seus demais escritos posteriores. A principal causa da degeneração stalinista não foram falhas inerentes ao bolchevismo, nos diz ele, mas a pressão de circunstâncias objetivas.
A discrepância entre essas duas passagens justifica um alerta. Existem muitos falsos começos e repetições no manuscrito. Se a Trótski tivesse sido concedida uma oportunidade de completar o texto e edita-lo para publicação, ele com certeza teria abordado estas questões. O assassino de Stálin impediu isto. O que Trótski nos deixou não foi um livro acabado, mas um arquivo de materiais para um trabalho em desenvolvimento. Como um resultado, nenhuma passagem no manuscrito pode sert tomada, em si mesma, como sua opinião definitiva.
Burocratismo desde o início?
O que devemos fazer das críticas de Trótski da liderança clandestina bolchevique como pequeno-burguesa na orientação de classe, burocrática nos métodos e conservadora na direção política?
Primeiro de tudo, estas afirmações, encontradas em algumas páginas do manuscrito inacabado de Trótski, contradiz a convicção que guiou toda a sua atividade após a ruptura com Stálin – de que ele estava defendendo o registro histórico e as políticas do movimento bolchevique desde a sua criação.
Segundo, Trótski está descrevendo o movimento bolchevique durante anos em que ele estava no exílio e se opunha fortemente a suas políticas. Não foi fácil para ele, nesta posição, ter uma ideia mais próxima do movimento bolchevique, e ele fornece pouca fonte material neste ponto. Sua opinião tem um peso, mas não pode ser convincente sem evidências que a sustentem.
Terceiro, a ênfase dos bolcheviques em construir organizações locais fortes, lideradas por um time de militantes profissionalizados (praktiki) [full-time organizers], era sua força distintiva entre as correntes da social-democracia russa – o que Trótski depois de 1917 recomendou aos socialistas ao redor do mundo. Se a estrutura era tão deformada, porque Lênin nunca notou este fato?
A resposta mais frequentemente ouvida a esta pergunta é que Lênin transformou o partido bolchevique imediatamente com o seu retorno à Rússia em abril de 1917, um processo frequentemente chamado de “rearmamento do partido”. Esta interpretação é bem sustentada, por exemplo, na história autorizada de Alexander Rabinowitch da revolução em Petrogrado [14].
Isto foi fortemente contestado por Lars Lih e recentemente por Eric Blanc; seus principais escritos estão no meu site, juntamente com refutações [15].
Finalmente, em face disso, esta visão parece simplesmente implausível. Como Trótski escreve em outro momento em seu manuscrito, em um contexto bastante diferente, como é possível que um tal partido, tão fatalmente falho, tenha levado a cabo a revolução de outubro?
Trótski recuou na sua visão sobre a URSS como um estado operário?
A nova edição da biografia de Stálin por Trótski, editada por Alan Woods, nos permite testar uma segunda hipótese sugerida pela edição do livro de 1946 feita por Malamuth: de que Trótski estava, em seus meses finais, recuando de sua afirmação sustentada por longos anos de que a União Soviética, mesmo sob a ditadura totalitária de Stálin, permanecia um estado operário [16].
Minha própria conclusão, depois de ler o texto de Trótski como um todo, é que seus comentários sobre a União Soviética e sua camada dominante são consistentes com sua posição anterior, particularmente com relação ao seu caráter enquanto uma “casta burocrática”, ao invés de uma nova “classe dominante”. Não vejo mudança nenhuma de abordagem. Mas minha opinião não é nada conclusiva, e nós devemos tentar outras linhas de investigação.
Meu amigo e colega Paul Kellogg fez a útil sugestão de que examinemos o uso por Trótski, em seu manuscrito, do conceito de que a camada dominante soviética tinha controle sobre a disposição do excedente social na União Soviética. Alguns sugeriram que este controle é uma característica definidora de uma classe dominante. Além disso, identificar a classe dominante sob Stálin como uma “classe” é geralmente feito para significar, como Trótski estava bem ciente, que a União Soviética sob Stálin não mais representava um estado operário – uma teoria à qual Trótski sempre se opôs.
Eu achei três passagens no livro que abordam o controle do excedente social. Em cada caso, o contexto é o início ou meados dos anos 1920, na época da recente Nova Política Econômica (NEP). Em cada caso, Trótski contrapõe explicitamente o controle do excedente pela burocracia ao das forças capitalistas que estavam ressurgindo. Aqui estão as passagens:
1. O kulak [camponês rico] somou forças com os pequenos industriais para trabalhar pela completa restauração do capitalismo. Dessa forma, uma luta irreconciliável se abriu sobre a divisão do produto excedente do trabalho. Quem o disporia no futuro próximo: a nova burguesia ou a burocracia soviética? (p. 563)
2. A economia reviveu. Um pequeno excedente apareceu. Naturalmente, estava concentrado nas cidades e à disposição do estrato dominante [ruling strata]. (p. 589)
3. Em relação ao [à luta sobre o] produto excedente nacional, a burocracia e a pequena-burguesia rapidamente se modificaram de aliados a inimigos diretos. O controle sobre o produto excedente abriu para o burocracia o caminho ao poder. (p. 595)
Nada disso sugere um reconhecimento de que a dominação capitalista havia sido restaurada. Isto não é uma surpresa; Trótski então falou como um dos líderes centrais do estado soviético. Ele então considerava que o governo soviético (a “burocracia”) agia como um agente da classe trabalhadora e servia a seus interesses. Em nenhum lugar em seus escritos da época Trótski sugere que a república soviética era algo diferente de um estado operário.
Trótski expressou esta visão fortemente. Por exemplo, no 4º Congresso Mundial da Internacional Comunista em 1922, Trótski defendeu as medidas econômicas soviéticas (a “Nova Economia Política” ou NEP) longamente contra críticas expressas por algumas correntes comunistas tanto na Rússia soviética quanto internacionalmente. Ele via a NEP como um sistema de medidas para fortalecer o estado operário e o poder dos trabalhadores. Na mesma discussão, Lênin aplica o rótulo de “capitalismo de estado”, mas em um sentido positivo, para fazer referência à economia soviética, e não ao seu estado. Trótski se recusou a usar este termo [17].
Claro, se Trótski tivesse concluído, em seus anos finais, que uma nova classe dominante havia derrubado o estado operário no início dos anos de 1920, ele teria expressado esta visão abertamente no seu manuscrito sobre Stálin e em outros lugares.
Data da composição
Uma segunda linha de investigação diz respeito à data de composição. Este manuscrito de fato contém os comentários finais de Trótski sobre o estado soviético sob Stálin?
O material introdutório feito pelos editores fornece dicas a respeito desta data. Trótski continuou a escrever e editar até ser assassinado em 21 de agosto de 1940. Mas, no momento de sua morte, diziam que ele estava querendo retomar o trabalho no “meu pobre livro” após uma longa e frustrante pausa. A última vez que havia trabalhado nele, nós aprendemos, foi em maio de 1940. Mas uma revisão dos eventos políticos da época indica que ele deve ter parado de trabalhar pelo menos oito meses antes [18].
Durante o último ano da vida de Trótski uma série de eventos relacionados com a eclosão da Segunda Guerra Mundial desafiou todos os marxistas, incluindo Trótski, a revisar suas análises sobre a União Soviética. Estes eventos incluíram:
– O tratado entre Stálin e Hitler, que deu aos nazistas sinal verde para a guerra.
– O aproveitamento soviético das marchas orientais da Polônia durante a conquista de Hitler daquele país.
– A assimilação estrutural destas regiões à União Soviética, o que incluiu não somente a transformação da economia, mas também extensas prisões e assassinatos daqueles julgados potencialmente desleais – uma extensão dos massacres de Stálin na União Soviética na década anterior [19].
– A ocupação soviética da Estônia, Letônia e Lituânia, e sua incorporação à União Soviética.
– Uma guerra soviética com a Finlândia.
Alguns marxistas, incluindo líderes proeminentes do movimento trotskista, interpretou estes eventos como a prova de que a União Soviética não era mais, de forma alguma, um Estado operário e não deveria ser defendida nesta iminente guerra. Na opinião de Trótski, embora algumas de suas ações pudessem ser justificadas em termos de defesa da URSS contra o ataque alemão, seu custo em termos da simpatia dos trabalhadores mundiais com a União Soviética superava qualquer vantagem militar. Contudo, ele negou que estes acontecimentos justificavam uma mudança nas avaliações dos marxistas sobre a União Soviética.
Trótski colocou a ocupação soviética dessas regiões fronteiriças como um teste do caráter do estado soviético. Seria capaz de tolerar e utilizar o sistema social capitalista nesses territórios, como – usando um exemplo contemporâneo – a China fez em Hong Kong? Pelo contrário, as relações capitalistas foram derrubadas nessas regiões e a economia nacionalizada e planejada estendeu-se às fronteiras ocupadas, demonstrando a incompatibilidade dos dois sistemas sociais.
Um debate sobre essas questões incendiou-se entre os apoiadores de Trótski no Partido Socialista dos Trabalhadores [SWP] (EUA), [debate] do qual Trótski participou ativamente. Suas contribuições, a partir de 12 de setembro de 1939 a 17 de agosto de 1940, estão reunidas no livro “Em defesa do marxismo” [20].
Não há referência aos eventos deste período ou às discussões acerca deles nos manuscritos de Trótski sobre Stálin.
Poderia ser que ele simplesmente não tenha chegado a este ponto em sua história? Não, exatamente o oposto, porque Trótski não escreveu o manuscrito sequencialmente do início ao fim. Ele reuniu os materiais para todos os capítulos projetados de maneira simultânea, e seus textos fragmentários e fontes materiais estavam classificados, do modo como se tornaram disponíveis, em pastas relacionadas a cada capítulo. Se Trótski estivesse trabalhando em sua biografia sobre Stálin entre setembro de 1939 e maio de 1940, enquanto ele estava imerso em escrever sobre a guerra e a URSS, isto estaria refletido em seu manuscrito sobre Stálin. Os fragmentos escritos por ele sobre a degeneração do estado soviético, o que lida com os eventos até 1938, cobrem 40 páginas da biografia. Mesmo assim não há menção em lugar nenhum de seu manuscrito sobre Stálin a eventos após 1938, como os que próximos à eclosão da Segunda Guerra Mundial ou ao debate resultante.
Esta ausência deixa claro que o manuscrito foi compilado antes da eclosão da guerra e não representa as visões finais de Trótski sobre o caráter da União Soviética. Estes se encontram em seus escritos de 1939-40 sobre a União Soviética e a guerra, reunidos no “Em defesa do marxismo”.
A União Soviética em guerra
O pacto entre Stálin e Hitler de 23 agosto de 1939 resultou em chamados imediatos dentro do movimento trotskista para uma mudança de postura em relação à URSS. Trótski respondeu a este desafio em 12 setembro: “Quem disse que a URSS não é mais um estado operário degenerado, mas uma nova formação social, deveria dizer claramente o que isto acrescenta às nossas conclusões políticas” [21].
A questão política central, como ele via, não estava em do que chamar a União Soviética, mas como se posicionar em seus conflitos com os Estados imperialistas. “Suponhamos que Hitler vire suas armas para o leste”, Trótski escreveu mais tarde neste mesmo mês. A IV Internacional, composta pelos apoiadores de Trótski em todo o mundo, adotará “como a tarefa mais urgente do momento, a resistência militar contra Hitler…. Enquanto estiverem com armas em mãos, eles irão golpear Hitler, [eles] ao mesmo tempo irão conduzir uma propaganda revolucionária contra Stálin, preparando sua derrubada no estágio seguinte e talvez bem próximo” [22].
Em 25 de abril de 1940, depois de mais de 6 meses de debate, Trótski escreve um comentário resumido em que ele faz um chamado aos socialistas para “explicar à classe trabalhadora do mundo que não importa de quais crimes Stálin possa ser culpado, nós não podemos permitir que o imperialismo mundial destrua a União Soviética, restabeleça o capitalismo e converta a terra da revolução de outubro em uma colônia” [23].
Um mês depois, em 28 de maio, ele finalizou um manifesto sobre a guerra. Ele incluía uma seção “Defesa da URSS” que afirma, em parte:
“[O]s crimes da oligarquia do Kremlin não retiram da agenda a pergunta sobre a existência da URSS. Sua derrota na guerra mundial significaria não meramente a derrubada da burocracia totalitária, mas a liquidação das novas formas de propriedade, o colapso da primeira experiência de economia planificada e a transformação de um país inteiro em colônia; isto é, a entrega ao imperialismo de recursos naturais colossais que o daria uma trégua até a terceira guerra mundial. Nem a população da URSS nem a classe trabalhadora mundial como um todo tem interesse em tal resultado.” [24]
A maioria dos participantes do debate de 1939-40, que considerou que o estado operário havia sido totalmente extirpado sob Stálin, adotou uma posição de “terceiro campo”, de neutralidade em relação aos conflitos entre a URSS e a Alemanha de Hitler. Esta posição foi mantida após as forças de Hitler invadirem a URSS no ano seguinte. Os proponentes do “terceiro campo” contavam com a queda do regime de Stálin e a ascensão de um movimento operário antifascista independente [25].
Mas os eventos tomaram um rumo diferente. Quando os nazistas invadiram, apesar de algumas incertezas, os trabalhadores da URSS se uniram ao Exército Vermelho como o único escudo disponível contra o genocídio nazista. Durante muitos anos de conflito selvagem, o Exército Vermelho soviético e o movimento de resistência através da Europa proferiram os golpes decisivos que destruíram o hitlerismo.
Esta batalha valeu a pena ser lutada? A questão foi refeita na Europa hoje pelo surgimento de movimentos de extrema-direita em muitos países – Ucrânia, Hungria, França, etc. – cuja linhagem histórica remonta aos aliados de Hitler nos países europeus nazistas.
Para muito neonazistas hoje, a guerra de Hitler contra os EUA pode parecer um erro, mas sua cruzada pela Europa Oriental era uma guerra justa contra a barbárie comunista. Os socialistas devem fazer melhor do que simplesmente adotar uma postura de neutralidade.
A referência ao custo humano horrendo da repressão stalinista não nos ajuda aqui. Trótski afirmou que o sistema de regras stalinista era similar ao de Hitler, usando o epíteto “totalitário”. Mas a questão colocada pela invasão nazista era se os trabalhadores poderiam usar o estado e o exército soviéticos para resistir e derrotar o fascismo e, assim, abrir caminho para ganhos revolucionários.
Uma guerra de conquista colonial
A respeito disso, é significativo que ambas declarações citadas de Trótski, em seus últimos meses de vida em defesa da URSS, observam que o objetivo da Alemanha hitlerista em sua iminente guerra contra a União Soviética não seria meramente conquistá-la e reivindicar seus recursos, mas sujeitá-la a um vasto projeto de colonialismo. Isto não era segredo nenhum na época. Os governantes da Alemanha haviam lançado este projeto muitas décadas antes, denominando-o da missão de “Lebensraum” – espaço vital. Em 1914, eles a integraram em seus objetivos de guerra. Os nazistas escolheram este projeto, incluíram-no em suas declarações fundamentais e imbuíram-no de seu extremismo racista caracteristicamente agressivo.
O ataque alemão à URSS tinha o objetivo explícito de assassinar 30 milhões de cidadãos soviéticos pela fome a fim de liberar comida para as necessidades do império nazista. Esta e outras dimensões do plano genocida nazista foram implementados desde o início da invasão [26].
Durante as semanas iniciais da invasão, os trabalhadores da União Soviética, percebendo as verdadeiras intenções dos nazistas, juntaram-se ao Exército Vermelho como o único instrumento disponível com o qual eles poderiam resistir e derrotar o fascismo.
Como o teórico marxista Ernest Mandel apontou mais tarde, os métodos genocidas dos nazistas não eram novos: eles já haviam usados antes contra os povos da Ásia, da África e da América. O que era particularmente assustador sobre o genocídio nazista foi o emprego [de tais métodos] contra povos brancos industrializados e culturalmente “avançados” da Europa [27].
É aqui, na resistência contra a guerra anti-soviética de Hitler, e não nas referências ao controle do excedente social, que encontramos o centro do julgamento final de Trótski sobre a União Soviética.
Esse fio anticolonial negligenciado nas declarações finais de Trótski sobre a defesa da União Soviética fornece um quadro no qual marxistas que diferem na definição sociológica da União Soviética podem encontrar um ponto em comum na sua avaliação do confronto histórico entre o fascismo alemão e a União Soviética.
A última palavra
O texto de Trótski, como apresentado na edição de Alan Woods, termina com uma reiteração profética do veredito do autor sobre a União Soviética sob Stálin:
“A despeito das monstruosas distorções burocráticas, a base de classe da URSS permanece proletária. Embora mine estas conquistas, a burocracia ainda não se aventurou a recorrer à restauração da propriedade privada dos meios de produção. Mas tenhamos em mente que o processo a se desenvolver ainda não foi completado e o futuro da Europa e do mundo durante as próximas décadas ainda não foi decidido”. [28]
Notas de rodapé
[1] Leon Trotsky, Stalin: An Appraisal of the Man and His Influence [Stalin], traduzido e editado por Alan Woods, London: Wellred Books, 2016. A introdução co-editada por Rob Sewall está disponível online. http://www.marxist.com/Trotskys-unfinished-stalin.html. Fotografias foram retiradas da coleção do falecido David King.
[2] Leon Trotsky, Stalin – an Appraisal of the Man and his Influence, traduzido e editado por Charles Malamuth, New York: Harper & Bros., 1946.
[3] Veja em John G. Wright, “A Biography of Stalin,” Fourth International, July 1946, pp. 18–21, http://themilitant.com/NI/web/NI.html e na introdução da edição de 2016 de Rob Sewell http://www.marxist.com/Trotskys-unfinished-stalin.htm
[4] Isaac Deutscher, The Prophet Outcast: Trotsky 1929-1940, London: Oxford University Press, 1963, pp. 451-7.
[5] Stalin, pp. 8, 9, 10.
[6] Stalin, pp. 256, 260, 281.
[7] Stalin, pp. 653, 655, 664
[9] Lars T. Lih, Lenin Rediscovered: “What Is to Be Done?” In Context, Chicago: Haymarket, 1908.
[10] Stalin, pp. 82–84.
[11] Stalin, pp. 257, 265, 259.
[12] Stalin, pp. 673–7.
[13] Stalin, p. 676.
[14] Alexander Rabinowitch, Prelude to Revolution: The Petrograd Bolsheviks and the July 1917 Uprising, Bloomington: Indiana University Press, 1991, pp. 32–47.
[15] https://johnriddell.wordpress.com. Esses recursos fornecem uma base para uma reconsideração informada da “tese do re-armamento” e precisam ser incluídos na ponderação das afirmações de Trótski. [Veja particularmente: Lih, Lars, “All Power to the Soviets,” uma série de estudos listada em “A Basic Question: Lenin Glosses the April Theses.” https://johnriddell.wordpress.com/2017/08/15/a-basic-question-lenin-glosses-the-april-theses/ Blanc, Eric, “A Revolutionary Line of March: ‘Old Bolshevism’ in Early 1917 Re-Examined.” https://johnriddell.wordpress.com/2017/04/02/a-revolutionary-line-of-march-old-bolshevism-in-early-1917-re-examined/ Le Blanc, Paul, Re-Arming the Party: Bolsheviks and Socialist Revolution in 1917 https://johnriddell.wordpress.com/2017/10/21/paul-le-blanc-re-arming-the-party-bolsheviks-and-socialist-revolution-in-1917/ Proyect, Louis, “The Revolutionary Democratic-Dictatorship of the Proletariat and the Peasantry? Say What?” https://johnriddell.wordpress.com/2017/03/20/louis-proyect-the-revolutionary-democratic-dictatorship-of-the-proletariat-and-the-peasantry-say-what/ Marot, John, “Lenin, Bolshevism, and Social-Democratic political theory.” https://johnriddell.wordpress.com/2015/06/11/john-marot-lenin-bolshevism-and-social-democratic-political-theory/
[16] Veja em Leon Trotsky, Stalin: An Appraisal of the Man and His Influence [Stalin], traduzido e editado por Alan Woods, London: Wellred Books, 2016 e Leon Trotsky, Stalin – an Appraisal of the Man and his Influence, traduzido e editado por Charles Malamuth, New York: Harper & Bros., 1946.
[17] Veja os discursos de Lênin (pp. 292-305), Trótski (pp. 347-371), e Clara Zetkin (pp. 305-337) sobre a Nova Política Econômica que aparecem em Riddell, ed., Toward the United Front, 2011. Os discursos são analisados, com referências, ibid. pp. 36–41.
[18] Stalin, xxiv-xxix.
[19] Muito tempo depois da guerra, autoridades russas admitiram as responsabilidades soviéticas pelo notório massacre de “Katyn”, em que 20 mil suspeitos foram assassinados.
[20] Trótski, In Defense of Marxism: The Social and Political Contradictions of the Soviet Union [IDOM], New York: Pathfinder, 1990.
[21] Trótski, IDOM, p. 1: “A Letter to James P. Cannon,” September 12, 1939.
[22] Trótski, IDOM, p. 20.
[23] Trótski, IDOM, “Balance Sheet of the Finnish Events,” p. 176.
[24] ”Manifesto of the Fourth International on Imperialist War and the Proletarian Revolution,” in Writings of Leon Trótski, 1939-40, New York: Pathfinder, 1973, pp. 183-222. https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1938-1949/emergconf/fi-emerg02.htm
[25] Veja em “The War in Russia,” um manifesto do Comitê Americano da IV Internacional, em New International, September 1941, pp. 241–7.
[26] Alex J. Kay, “The Radicalization of German Food Policy in Early 1941,” em Kay, Jeff Rutherford, e David Stahel, ed., Nazi Policy on the Eastern Front, 1941, Rochester: University of Rochester, 2012,
[27] Ernest Mandel, The Meaning of the Second World War, London: Verso, 1986, pp. 90-3. Veja também Ava Lipatti, “Russophobia and the Logic of Imperialism”, publicado por Hampton Institute em 8 de junho de 2017. Lipatti se baseia no livro War and Revolution: Rethinking the Twentieth Century de Domenico Losurdo, London: Verso, 2015.
[28] Stalin, p. 690
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