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A política de alguns corpos (Peter Drucker)


A política de alguns corpos

Peter Drucker

Tradução de Bruno Araujo

THE POLITICS OF EVERYBODY: FEMINISM, QUEER THEORY AND MARXISM AT THE INTERSECTION BY HOLLY LEWIS (A política de todos os corpos: feminismo, teoria queer e marxista em intersecção, em tradução livre)

Numa época em que as políticas marxistas estão pelejando mais do que nunca como atualmente, o marxismo queer acadêmico está gozando de um ressurgimento discreto, surpreendente e animador. “The Politics of Everybody” é uma grande contribuição para essa tendência.

Enquanto despretensiosamente compromissada com as políticas de classe, Lewis de forma perspicaz entrelaça o marxismo ao feminismo. De página em página, os argumentos acerca das vivências queer presentes em The Politics of Everybody elevam o debate a outro patamar de qualidade.

O escopo das contribuições de Lewis é muito vasto para ser resumido em uma análise. Entretanto, em ocasião de escolher um que se destaca entre os demais, escolho a forma como ela se apropria de teorias de reprodução social para jogar luz sobre os meios como opressões de gênero operam no mundo capitalista atual. Sobretudo o nosso entendimento sobre violência contra lésbicas e pessoas trans jamais será o mesmo depois deste livro.

A fim de dar uma ideia ao leitor desde o princípio: Lewis e eu somos camaradas de militância e parceiros de luta. Nós concordamos com muito mais frequência do que discordamos.

Num espectro bem amplo de questões, penso que ela é 100% certeira. Mesmo quando discordamos, acho que a sua perspectiva me desafia forçosamente a repensar a minha própria – de uma forma deslumbrantemente acessível. Não que Lewis simplifique alguma coisa: seu domínio de um vasto repertório de teoria e sua habilidade de expor particulares intersecções são impressionantes. [2]

Ainda assim, em sua última análise, sua defesa de marxismo queer não é exatamente a mesma que a minha. [3] Eu argumento em prol de um marxismo feminista e antirracista no qual aspectos de classe, gênero, raça e sexualidade só podem ser completamente entendidos em relação uns com os outros.

Lewis é absolutamente uma feminista marxista antirracista – ela contundentemente critica a negligência sobre gênero da esquerda pré decada de 1960 (190) – mas dá bastante ênfase ao modo como a classe é fundamentalmente decisiva.

Às vezes sinto que o preço que se paga pela clareza de Lewis é o da nuance. Voltarei a este ponto.

Gênero sob o capitalismo

The Politics of Everybody oferece uma interessante análise sobre como, “dentro de relações sociais capitalistas, [pessoas] habitam complexos corpos que estão coletivamente codificados para diferentes funções.” (13)

A forma como corpos e sexualidades funcionam localiza-se em uma rede na qual o gênero é peça chave. E a forma como o gênero funciona sob o capitalismo é (de acordo com Lewis) determinada, sobretudo, pelo seu papel na reprodução social dos corpos, seres humanos e os modos de produção.

Nas últimas décadas, muitas feministas marxistas exploraram o papel do gênero no que Marx e Engels descreveram como relações sociais capitalistas de produção e (especialmente) reprodução. A teórica feminista marxista em quem Lewis mais se baseia é Lise Voel. ([ Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women: Towards a Unitary Theory, Chicago: Haymarket, 2014])

Vogel resume a reprodução social do trabalho com base em três processos principais: atividades diárias fora das horas de trabalho (como preparar refeições e outras formas de cuidado) que renovam a energia dos trabalhadores; o cuidado de outras pessoas que não são trabalhadores assalariados no momento (crianças que serão futuros trabalhadores assalariados, aposentados que não são mais trabalhadores assalariados, trabalhadores temporariamente desempregados ou doentes, e cuidadores que são eles mesmos trabalhadores assalariados); e a substituição geracional de trabalhadores através da criação de filhos.

Ao longo da história do capitalismo, mulheres em lares privados (famílias) fizeram o grosso do trabalho reprodutivo. Isso torna as mulheres “objetos a serem trocados por sexo, trabalho doméstico e maternidade.” (97) [5] Isso também dá aos homens cisheterossexuais da classe trabalhadora um papel (de um ponto de vista míope que aceita os limites do capitalismo de gênero) na opressão de mulheres.

Além disso – uma das principais linhas de raciocínio de Lewis – uma “leitura trans e queer inclusiva” da reprodução social (103) segue um longo percurso para explicar a ira de muitos homens cis para com lésbicas e pessoas trans.

Lésbicas assumidas, junto com pessoas trans que (sejam homens trans ou gênero queer) transicionam para o gênero oposto ao feminino à elas atribuído ao nascerem, são as pessoas que mais comumente se rebelam contra as tarefas de cuidado com os homens designadas às mulheres. Se homens “veem lésbicas e homens transgênero como donas de casa que se recusam a prover cuidado doméstico e trabalho afetivo gratuito, a violência deles começa a fazer sentido politicamente”. (155) [6]

Homens que já estão sofrendo perda de renda, poder e status diante do capitalismo, particularmente, podem enxergar a revolta lésbica e trans contra o papel “natural” da mulher como um ataque pessoal que clama por vingança.

Essa análise aborda a lesbofobia melhor que um recorte estreito no que diz respeito ao sexo. De fato, muitos homens heterossexuais se excitam com imagens de sexo lésbico – contanto que o lesbianismo não seja percebido como uma ameaça à supremacia social e sexual do homem. (O sexo talvez seja mais um fator contribuinte para a repulsa dos homens ao sexo gay masculino, mas esse não é um dos focos do livro de Lewis).

A análise de Lewis dá a ela uma base sólida para insistir no papel central das lésbicas no movimento das mulheres e no papel integral das pessoas trans no feminismo. “Historicamente”, ela aponta, “mulheres trans da classe trabalhadora e lésbicas feministas, sentiram o peso” da misoginia contra as mulheres. Mulheres feministas precisam defendê-las: “uma ofensa a uma é uma ofensa a todas.” (277-8)

Indo de encontro a essas ideias, o feminismo radical trans excludente (TERFs) se alinharam à direita religiosa no que diz respeito à questões que vão desde projetos de lei que regulamentam o uso de banheiros até ao reconhecimento dos direitos trans pelas Nações Unidas. (32) Ao depositar ênfase no significado socioeconômico do gênero, Lewis evita cair em argumentos essencialistas sobre quem é realmente mulher. Como ela aponta, esses argumentos frequentemente criam uma nuvem em torno de polêmicas entre TERFs e ativistas trans, e ameaçam criar um novo e rígido binário masculino-feminino no lugar do antigo.

“Guerras sexuais” diversionárias

Lewis também expõe o aspecto utópico da tentativa de feministas culturais da segunda onda – notavelmente em comunidades lésbicas separatistas – de viverem vidas livres das amarras de gênero e do comportamento binarista masculino-feminino.

Essas tentativas ignoram a realidade da vida sob circunstâncias capitalistas, promovendo ilusões de que as mulheres poderiam escapar opressões de classe e violência por si mesmas, opressões essas que eram atribuídas exclusivamente ao homem. (31)

A ideologia cultural feministas deu frutos tóxicos às chamadas “guerras sexuais” dos anos 1980. Lewis postula que tratar mulheres “como porcas e colaboradoras por suas preferências sexuais” causou um afastamento do engajamento coletivo de mulheres em busca de liberação social através da luta na sociedade em larga escala. Isso, equivocadamente, jogou a culpa da opressão das mulheres sobre as próprias mulheres. (97)

Em suma, o baseamento de Lewis na teoria da reprodução social de Vogel prova-se extremamente frutífero. Eu sugeriria, entretanto, que Lewis desse mais atenção à outra abordagem feminista marxista complementar para associar classe e gênero: a ênfase dada por Iris Young à divisão do trabalho a partir do gênero.

A abordagem de Young não necessariamente precisa ir de encontro à de Vogel. [7] Porém, Lewis cita Vogel ao argumentar que, uma vez que “a divisão do trabalho por gênero não havia produzido desigualdades nos primórdios da humanidade... não haveria embasamento teórico para afirmar que tal fato ocorre atualmente.” (177)

O argumento de Vogel é ambíguo. Antropólogas feministas talvez ainda debatam sobre se a divisão do trabalho por gênero foi uma fonte de desigualdade entre povos mais antigos, mas em todos os estágios de desenvolvimento da sociedade o gênero esteve atrelado às desigualdades de classe.

Também sob o capitalismo, mulheres são oprimidas tanto na produção quanto na reprodução. Elas não são apenas subordinadas em casa, mas também recebem menores salários, são mais desprovidas de posições de poder e demitidas mais cedo dos locais de trabalho.

Essa realidade dupla ajuda a explicar a disseminação e persistência da opressão lésbica. De certo modo, lésbicas talvez estejam menos expostas às opressões na esfera da reprodução, mas elas sofrem mais que as mulheres cis na esfera da produção: mesmo que as lésbicas se libertem de terem que cuidar de homens, elas são mais afetadas pela menor renda destinada às mulheres e status na economia e na sociedade.

Esse é um segundo argumento central para o papel fundamental das lésbicas no movimento feminista, complementando a argumentação de Lewis.

Homonormatividade?

Essa é uma mera nota de rodapé para o grande alcance teórico de Lewis. Entretanto, eu realmente divirjo dela acerca do conceito de “homonormatividade”. Lisa Duggan cunhou esse termo em 2002, o definindo como um pensamento que não “contesta premissas e instituições dominantes da heteronorma mas que os sustenta e endossa.” [8]

Desde então, a ideia tem se tornado central para o ativismo queer radical, embasando a raiva de pessoas queer radicais com relação à vertente mainstream do movimento focada em questões como casamento igualitário e direitos de acesso às forças armadas. No livro ‘Warped’ eu usei o termo como uma descrição global de antítese das políticas queer anticapitalistas.

Lewis rejeita essa forma de usar o termo. Ela faz muitas críticas ao modo como queers radicais o usam, a maioria delas bem feitas. “Quando a subcultura queer é elevada ao nível de princípios políticos, ela se torna uma espécie de elitismo que só pode ser usufruído por pessoas brancas financeiramente seguras”, escreve. (164-5)

Lewis conta a história de como uma marcha do orgulho queer e trans alternativa em Austin, no Texas, rapidamente abaixou suas placas anticapitalistas porque “a marcha nunca foi anticapitalista – era meramente anticorporativismo e anticonsumismo”. (220) Ela se encaixa numa agenda pós-moderna de “pequenas formas de resistir ao Poder”: “compras locais, reuso e reciclagem, promoção de trocas justas e alimentos orgânicos.” (193)

Esse tipo de política classe média, individualizante e moralizante existe tanto entre pessoas dissidentes quanto entre pessoas cishetero. Em ‘Warped’, eu insisto que uma política anti-homonormativa não deveria focar em julgar pessoas pelas suas escolhas pessoais.

“Ninguém pode optar por viver completamente liberto das normas”, eu escrevi. “Nem faz sentido rotular toda pessoa LGBT que não é visivelmente queer a todo momento como homonormativa, ou condenar toda pessoa gay da classe trabalhadora com uma renda razoável por consumismo”. [9]

Ao invés disso, como Lewis reafirma, nós deveríamos resistir à imposição , através de leis, economia e pressão social, de heteronormas às pessoas queer.

É intrigante que Lewis apoie o uso de dois outros conceitos que estão relacionados ao de homonormatividade. Ela abraça a crítica de Jasbir Puar ao “homonacionalismo”, um termo que foca no “eurocentrismo do movimento gay e lésbico, com foco no casamento, serviço militar, e a linguagem cidadã.” (222-3)

Lewis também explora e critica a “transnormatividade” de forma perspicaz: pressão sobre as pessoas trans para que “sejam identicas a uma pessoa cisgênero”. (304 n.22) Ainda assim, Lewis negligencia outras dimensões da homonorma que anda de mãos dadas com o homonacionalismo e a transnormartividade.

Por exemplo, o movimento gay/lésbico mainstream insiste que pessoas LGBTI são uma minoria fixa de pessoas que “nasceram assim”. Muitos lugares lésbicos/gays excluem ou marginalizam pessoa não-cisgênero. Lewis sabe disso, mas parece não reconhecer o quão prevalente isso é.

De fato, Lewis é crítica a muitas formas de assimilacionismo gay (sobretudo gay masculino). Se ela parece alérgica à palavra “homonormatividade”, é, especialmente, porque muitas pessoas queers da classe média usam isso contra lésbicas da classe trabalhadora.

É verdade: muitas críticas queer à homonorma partem da classe média, e muitas lésbicas da classe trabalhadora estão atreladas a papéis de gênero e famílias. De fato, existem até lésbicas da classe trabalhadora que desaprovam profundamente transgressões contra aquilo que enxergam como comportamento sexual apropriado.

E daí? Marxistas entendem, pelo menos desde de Lukács, que nenhuma posição de sujeito sob o capitalismo garante consciência revolucionária. Algumas pessoas da classe média, queers, não-marxistas são capazes de terem reflexões sobre capitalismo e sexualidade que lésbicas da classe trabalhadora não são. Nós precisamos apoiar lutas anticapitalistas, de quem quer que seja, em toda sua complexidade.

Famílias e suas contradições

Lewis acredita que críticos da homonormatividade são muito censuradores do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ela escreve que o movimento em prol do casamento igualitário demanda “liberdade das amarras da interferência do Estado” (236); ela deixa de reconhecer todas as maneiras que o casamento liga os casais do mesmo sexo ao Estado (visto as 1,138 normas que o casamento sozinho tem sob a lei federal). [10]

Ela também não faz justiça a todas as pressões sobre o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo para se encaixarem nas normas de estabilidade, autossuficiência e respeitabilidade de acordo com os interesses da austeridade neoliberal.

Nesse ponto, eu gostaria que Lewis tivesse uma visão mais crítica. Deve ser possível apoiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, ao mesmo tempo, reconhecer e resistir às pressões homonormativas que restrigem a liberdade para que casais definam formas próprias de relacionamento.

Lewis prefere dar ênfase aos modos como famílias da classe trabalhadora são ferramentas de apoio mútuo. (234) Ela recorre ao texto de Angela Davis ‘Mulheres, Raça e Classe’ para apontar que famílias negras lutaram para se manterem juntas enquanto senhores de escravizados (no passado) e a pobreza (no presente) tentavam os separar. (156) Ela acrescenta que maiores porcentagens de famílias negras e latinas formadas por pessoas do mesmo sexo, em detrimento de famílias brancas, estão criando filhos. (305 n. 28)

Como Lewis e eu reconhecemos, tudo isso é um lado importante da realidade das famílias, mas apenas um dos lados. Feministas da classe trabalhadora, afro-americanas e latinas, também ressaltam as várias formas que estas mesmas famílias podem ser opressivas com mulheres e pessoas queer.

Pessoas LGBTI oprimidas das mais diversas formas não têm motivos para emular pessoas queer da classe média, mas têm motivos de sobra para lutarem para transformar modelos familiares sufocantes. Lewis acredita que a família não é intrinsecamente boa ou ruim, porque isso significa coisas diferentes em momentos diferentes. Eu daria mais ênfase a características opressivas de famílias que estão estruturalmente incorporadas à sociedade capitalista em que vivemos.

Neoliberalismo e hierarquia global

As restrições impostas pelas famílias às pessoas pobres e trabalhadoras tornaram-se ainda mais sufocantes nas últimas décadas por cortes neoliberais em programas estaduais de bem-estar social.

Lewis sabe disso. Ela certamente sabe que padrões de gênero e sexualidade mudaram radicalmente ao decorrer do século XX. Porém, muitos trechos de The Politics of Everybody, como aqueles que definem o “trabalho abstrato” e “trabalho essencial”, poderiam se ater mais às formas como as mudanças sociais de nossos tempos modificaram drasticamente a infraestrutura capitalista que Marx descreveu em O Capital.

Lewis expressa moderação sobre o número de marxistas, indo desde os leninistas tardios (embora ela valorize o trabalho de Lenin) até Hebert Marcuse, porque ela teme que as atenções destes sobre as mudanças geopolíticas ou estruturas psíquicas nos distraiam da teoria do valor-trabalho. (64)

Temo que o foco de Lewis nas continuidades do capitalismo possam obscurecer os modos como o neoliberalismo tem remodelado a hierarquia imperialista global, remodelando formas iniciais de racismo em outras novas formas focadas nos imigrantes e muçulmanos, transformando o gênero e mecanismos sociais de reprodução. [11]

O título cativante de The Politics of Everybody resume a tensão que vejo no trabalho de Lewis entre sua ênfase em estruturas profundas e seu reconhecimento das diferenças intrínsecas ao capitalismo. Para ela, “everybody” (todos ou todos os corpos, em tradução livre) é uma forma mais acessível de se referir ao conceito marxista de “totalidade”, que eu concordo que é crucial. Entretanto, para mim, uma totalidade marxista é sempre complexa, contraditória e multicamadas, enquanto “everybody” soa como uma referência a pessoas em geral.

Na verdade, o livro de Lewis revela, através de seu profundo conhecimento como os corpos humanos são generificados, racializados e moldados de várias formas histórica e geograficamente. Desse modo, abrangente como é o livro, seu título promete algo além do que ela pode entregar (ou que qualquer pessoa poderia).

O que ela descreve, de maneira convincente e poderosa, é uma política de alguns corpos: especificamente, corpos queer, principalmente nos Estados Unidos, sob o neoliberalismo.

A ênfase de Lewis nas estruturas persistentes do capitalismo talvez reflitam seu embasamento em Vogel. Diferente de muitas teóricas feministas, Vogel defende que enquanto tradicionalmente mulheres em famílias fazem o grosso do trabalho reprodutivo, esse fato não é inerentemente necessário ao capitalismo.

Trabalhadores podem ser alojados e alimentados em dormitórios, como foi feito na Nova Inglaterra do século XIX e é feito hoje na China do século XXI. Eles podem comer no McDonald’s e dormir em hotéis. Não obstante, crianças nascem para renovar a força de trabalho (como em todos os países europeus de hoje), trabalho imigrante pode ser importado. Por isso, ao invés de alimentar e cuidar adequadamente dos trabalhadores, empregadores podem simplesmente os esgotarem até a morte e substituí-los por novos (como em Auschwitz e outros campos de concentração nazistas).

Lewis conclui que a resistência queer às famílias homonormativas não necessariamente desafia o capitalismo, porque mesmo que o capitalismo faça uso da família “o mesmo não se preocupa realmente com a família”. (279) Se gays assimilacionistas podem ser cooptados pelo capitalismo, ela raciocina, os dissidentes radicais também podem – até certo ponto pelo neoliberalismo de hoje, ou talvez até mais por alguma forma de capitalismo futura.

Lógica e história

Entretanto, como percebe Lewis, mesmo que se possa imaginar um capitalismo que se reproduzisse sem depender centralmente das estruturas familiares de gênero, historicamente isso nunca aconteceu. Modos alternativos de reprodução como dormitórios e campos de trabalho sempre foram geográfica e temporariamente restritos. E é difícil de imaginar hoje em dia um modo de reprodução que abarcaria completamente as demandas queer.

Cinzia Arruzza tem defendido que tomar os requerimentos abstratos do capitalismo como nosso ponto de partida anticapitalista nos deixa com “um entendimento teórico de lutas políticas... que negligencia as vivências reais de pessoas exploradas e oprimidas.”

Uma vez que “lógica e história possuem uma relação dialética”, mesmo que as desigualdade de gênero não seja uma característica lógica inevitável do capitalismo, ela é uma “característica estrutural das formações sociais capitalistas”. A sua abolição não é plausível em qualquer futuro capitalista atualmente previsível, conclui Arruzza. [12]

Isso significa que as provocações queers às famílias homonormativas são uma ameaça, se não para o capitalismo em abstrato, então para o capitalismo neoliberal que realmente enfrentamos. Nesse capitalismo existente, a opressão como definida por Lewis – que “é opressiva porque é sentida” – e exploração, que ela chama de “discrepância matemática” entre o valor-trabalho e a força de trabalho (274), estão indissociavelmente entrelaçadas.

Gerações de marxistas desde E.P. Thompson têm mostrado como a classe está emaranhada nas vivências, comunidades e cultura.Gerações de feministas marxistas e antirracistas têm mostrado como gênero e raça são estruturalmente centrais pro capitalismo. Desse modo, uma teoria unitária e historicamente consciente é indispensável.

Pungente

Lewis é uma escritora forte e comprometida. Ela não apenas se faz ser entendida, como também prende a atenção do leitor com imagens poderosas e afirmações contundentes. Muita vezes tenho inveja do poder de sua prosa.

Sua exposição tanto das limitações das políticas de gênero como de sua crítica economista, por exemplo, é perspicaz. Enquanto “identidades existem e... se prender a um rótulo específico tem consequências políticas,” explica, políticas identitárias são “irreconciliáveis com o marxismo” se isso significa que feministas no Texas e em Tóquio não podem realmente se conectarem, ou que pessoas dissidentes em Uganda não querem o respeito que pessoas queer americanas querem.

Eu saboreio o resumo de Lewis: “Bem-vindo à raíz do relativismo”. (83) Eu gostaria de conseguir escrever desta forma. Mas às vezes as formulações impressionantes de Lewis me deixam um pouco ambivalente. Às vezes, sinto que sua habilidade de postulação ocorre às custas das nuances implícitas no texto.

Por exemplo, quando discute interseccionalidade – a abordagem feminista sobre classe, gênero, raça e sexualidade e o entendimento das relações entre eles – ela foca em criticar o que chama de um “modelo vetor” de opressões, escrevendo: “Opressões não podem ser pregadas na parede como borboletas mortas.” (195) Esta é uma ótima frase – mas não faz jus ao sofisticado pensamento de muitas feministas sobre interseccionalidade, que é refletido em qualquer outra passagem do livro.

Lewis é habilidosa em sintetizar debates contemporâneos e elucidar que apenas uma abordagem marxista correta proporciona a resposta certeira. Mas, de vez em quando, sua abordagem marxista correta dá muito crédito à teóricas que ela despreza.

Ela desdenha da teoria queer contemporânea [13] no geral, geralmente de forma assertiva; mas ela respeita uma teórica queer na linha de frente como Judith Butler, cuja teoria da performatividade de gênero Lewis acha importante e longe de ser “incompatível com a análise materialista” (199) Seria bom se Lewis mostrasse a mesma generosidade para com outras teóricas queer.

Mesmo que o marxismo fosse intelectualmente hegemônico hoje, estar aberto para outras escolas de pensamento poderia render um diálogo frutífero. Nos dias de hoje, nos quais o marxismo anda na defensiva, poderia ser também estrategicamente inteligente.

Lewis expõe a melhor direção para essa discussão quando clama “por um futuro onde não haja a necessidade de um feminismo marxista ou marxismo queer” porque a luta contra a opressão de gênero e sexual tornou-se reconhecida como parte e parcela “do movimento internacional para expropriar os expropriadores”. (281) A isso eu posso apenas adicionar um heterodoxo e genuíno “Amen”.

Notas

1. Certamente, se a conferência anual do Materialismo Histórico em Londres é um barômetro - a edição de 2016 contou com nada menos que sete painéis em sua nova jornada queer.

2. Talvez a habilidade de Lewis em comunicar tenha sido afinada por ensinar filosofia para estudantes hispânicos, em sua maioria pertencentes a classe trabalhadora, na Texas State University em San Marcos.

3. A mesma sintetizou nossas concordâncias e divergências numa apresentação num painel sobre meu livro Warped na conferência do Materialismo Histórico em novembro de 2015, em Londres. Seu paper será publicado na próxima edição do Journal of the International Network on Sexual Ethics e Politcs.

4. Peter Drucker, Warped: Gay Normality and Queer Anti-Capitalism, Leiden/Chicago: Brill/Haymarket, 2015 (reviewed by Alan Sears in ATC 179, November-December 2015).

5. Um apontamento feito no clássico ensaio de Gayle Rubin “O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”, em Deviations: A Gayle Rubin Reader, Durham NC: Duke University Press, 2011

6. Seguindo os passos de Julia Serano, Lewis descreve os defensores do binarismo de gênero como “antagonistas sexistas”. (120) Eu acho esse termo confuso. Serano e Lewis querem dizer que esses reacionários antagonizam masculinidade e feminilidade rigidamente um contra o outro; mas o termo poderia ser facilmente lido de forma errônea sugerindo que eles de alguma forma estão opostos às estruturas de poder

7. Ensaio clássico de Young, “Beyond the Unhappy Marriage: A Critique of the Dual Systems Theory,” em Lydia Sargent (ed.), Women and Revolution: A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism, Boston: South End Press, 1981, não está incluso na bibliografía de Lewis.

8. Lisa Duggan, “The New Homonormativity: The Sexual Politics of Neoliberalism,” in Russ Castronovo and Dana D. Nelson (eds.), Materializing Democracy: Toward a Revitalized Cultural Politics, Durham NC: Duke University Press, 2002, 179

9. Warped, 258

10. Nicola Barker, Not the Marrying Kind: A Feminist Critique of Same-Sex Marriage, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012, 181-2

11. Minha própria análise sobre neoliberalismo e homonormatividade em Warped é parte de uma narrativa maior sobre mudanças nas “formações entre pessoas do mesmo sexo” no período do último século e meio da história capitalista. A escrita de Lewis em Warped no Journal of the International Network on Sexual Ethics and Politics incluirá uma crítica deste conceito de “formações entre pessoas do mesmo sexo”, uma crítica que eu acredito ser justificada de várias formas. Eu espero reformular o conceito ao responder esta questão nessa mesma edição, eliminando seus defeitos e retendo a periodicidade das sexualidades em mutação. Entretanto, esse debate não é diretamente relevante para As Políticas de Todo Mundo.

12. Cinzia Arruzza, “Logic or History? The Political Stakes of Marxist-Feminist Theory,” International Viewpoint, 5 July 2015, Logic or History? The Political Stakes of Marxist-Feminist Theory

13. Teoria queer é uma abordagem dos estudos queer, originando-se no início da década de 1990 e representada por acadêmicos como Judith Butler e Eve Kosofsky Sedgwick, que foca em desafiar o essencialismo de gênero e mostrar a natureza socialmente construída de atos sexuais e identidades.

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