Sujeito político e estratégia no movimento de mulheres
Julia Cámara
Tradução de Maria Guimarães
Revisão de Pedro Barbosa
Durante os últimos dias, nós que participamos dos espaços do movimento feminista e seguimos os debates teóricos disso a que se chama de esquerda nos vimos cercadas por toda uma série de artigos e publicações que buscam desvendar qual seria o sujeito político do feminismo. Mesmo com diferenças óbvias, não se pode deixar de assinalar a semelhança irônica e irritante que este conflito tem com o que nos ocupava há algumas semanas, a saber: a busca, no mais puro estilo Indiana Jones – épica, viril e heroica –, do sujeito político da luta de classes. Uma observação geral deveria ser válida para ambas polêmicas: os sujeitos precisam da práxis, se constituem na luta conjunta e a partir das experiências concretas compartilhadas. Não existe identidade essencial alguma a se reclamar sem a materialidade das práticas.
Vários dos argumentos colocados no debate sobre sujeito político são, em minha opinião, reducionistas e problemáticos, e ignoram muitos dos debates necessários e inclusive já presentes no movimento (como a descolonização de nosso feminismo ou a articulação de alianças com setores operários feminizados na luta) para limitá-los por inteiro a uma ou duas problemáticas. Apresentam talvez ideias elementares que podem se encaixar nos pressupostos ideológicas de muitas mulheres, mas à custa de reduzir questões teóricas ricos e complexas a um par de frases tuitáveis esvaziadas de todo potencial de compreensão e mobilização. Pelo contrário, creio que devemos entender este debate como indissoluvelmente ligado ao momento atual de crises global e mudança sistêmica, e ao modo como funciona e se reproduz a opressão patriarcal realmente existente. Só assim conseguiremos compreender o papel que desempenha o movimento feminista internacional e adotar táticas e estratégias coerentes que nos incluam todas.
Alguns elementos para a análise
Ao longo dos próximos parágrafos vou tratar de argumentar que, no atual período de acumulação por despossessão, nós mulheres constituímos um setor estratégico da classe. Ou, dito de outro modo, que nos encontramos na condição de ser um sujeito político estratégico na luta contra o Capitalismo [1]. Isto não é assim por um tipo de acumulação de opressões mal entendida nem por nenhuma identidade original dada pelo Capitalismo nem, muito menos, pela biologia, mas responde a uma combinação de fatores diversos que nos colocam em uma posição estratégica a se manifestar na atual fase de expansão capitalista neoliberal. Tratarei de explicá-lo e de ver que implicações têm isto para as práticas e discursos do movimento feminista.
A contradição Capital/vida, acentuada nos últimos anos com o renovado recurso à acumulação por despossessão depois da quebra de 2007/2008, coloca as mulheres numa situação especialmente complicada. As políticas de ajustes estrutural que destroçam os precários Estados de Bem-estar da periferia europeia, e que já antes assolaram os países do Sul Global, nos colocam em condições de falar de uma crise da reprodução social, que afeta a todos os aspectos de nossas vidas e ataca a todos aqueles redutos que ainda não foram incorporados à lógica do lucro. As principais afetadas por isto somos aquelas cujo papel é precisamente o reprodutivo num sentido econômico amplo: as mulheres. Neste contexto, as resistências femininas (não necessariamente articuladas como feministas no plano consciente) se revelam como fortes alavancas de transição. Para explicar isto me apoiarei num conceito que considero especialmente útil: o de consciência feminina.
No final dos anos 80, durante o período de auge da historiografia feminista e da História das Mulheres, a hispanista Temma Kaplan avaliou que as explicações marxistas e feministas clássicas não lhe eram úteis para compreender os repertórios de ação coletiva adotados por mulheres em determinados contextos de conflito social. É então que desenvolve o conceito de consciência feminina, que faz referência ao ato, por parte das mulheres, de se assumir o dever de cumprir com nosso papel social [2]. A consciência feminina cria um sentimento coletivo de direitos e obrigações, fruto da interiorização do papel das mulheres na divisão sexual do trabalho. O resultado é a identificação generalizada das próprias mulheres com o trabalho reprodutivo que lhes foi atribuído e o ato de assumir coletivamente o dever de preservar a vida.
A consciência feminina é, portanto, na origem, uma consciência conservadora, pois não busca a transformação da sociedade nem das relações de gênero, mas sim a execução das tarefas que se derivam destas. Ao aceitar tais tarefas, no entanto, as mulheres com consciência feminina reivindicam os direitos que suas obrigações levam consigo, e o impulso coletivo necessário para assegurar estes direitos pode chegar a desenvolver uma força que acabe politizando as redes de relações da vida cotidiana. Quando parece que está em jogo a sobrevivência da comunidade, as mulheres ativam suas redes de relações para combater aqueles ou aquilo que acreditam que interfere em seu dever de conservar a vida como sabem. Ao colocar a necessidade humana por cima de outras exigências sociais e políticas, e a vida acima da propriedade, dos benefícios privados e inclusive dos direitos individuais, a consciência feminina cria a visão de uma sociedade que ainda não surgiu. É, portanto, uma consciência de transição, com implicações políticas radicais e capaz de fazer dar saltos de consciência a amplas camadas de mulheres.
No curso da luta por levar a cabo o papel que a sociedade lhes encomendou, algumas mulheres se chocam frontalmente com um sistema, o capitalista, que é radicalmente contrário à vida. Isto não é algo transversal nem inerente à identidade individual de mulher, pois nem todas as mulheres se vem atravessadas na mesma medida pela experiência da despossessão: são as mulheres das classes subalternas as que encontram mais dificuldades para reproduzir a vida e, portanto, as que mais frequentemente se veem inclinadas para repertórios de ação radicais. O recurso por parte das classes altas a enfermeiras, babás, amas de leite e outras figuras similares liberaram historicamente algumas mulheres das responsabilidades do trabalho reprodutivo e de cuidados, articulando mecanismos distintos para sua construção social como mulheres. O mercado privado atual de compra e venda de serviços, junto com a feminização das redes migratórias e as denominadas cadeias globais de cuidados, responsabilizam não às mulheres como classe ou grupo social homogêneo, mas sim a determinados setores de mulheres, pela manutenção global da vida.
A colisão da consciência feminina das mulheres de determinado extrato de classe com a sociedade realmente existente faz com que sua luta por levar a cabo o trabalho reprodutivo e de cuidados, geralmente marcado no âmbito doméstico e das relações privadas, irrompa no espaço público, dotando de um sentido político as redes de reprodução.
Que implicações tem isto para o movimento feminista?
Em seu recente livro Dois séculos de feminismo, Cinzia Arruzza e Lidia Cirilo apontam uma ideia interessante: as mulheres não existimos como sujeito político permanente, mas este sujeito se constitui pontualmente naqueles momentos em que a condição social mulher é percebida por quem a possui como causa principal de opressão e discriminação [3]. Nos encontramo em um desses momentos.
Tomando as palavras de Nancy Fraser, “na atual onda de fermento feminista, muitas que antes tínhamos sido mulheres de um modo estabelecido nos convertemos agora em mulheres no sentido muito distinto de coletividade política discursivamente autoconstruída” [4]. É de certo modo um processo de auto-enunciação coletiva, no qual nós mulheres nos encontramos, nos juntamos e nos reconhecemos umas nas outras a partir da pretendida transversalidade da opressão compartilhada.
De maneira sintomática, as reivindicações que articulam este fenômeno são duas: o direito ao próprio corpo (protestos pelo direito ao aborto no Estado Espanhol, na Polônia, na Irlanda ou na Argentina) e contra a violência sexual e os feminicídios. Quer dizer, violências que nos afetam, ainda que com materializações diversas, a todas as mulheres. Talvez o exemplo mais óbvio seja o da campanha internacional #MeToo, que ainda que na França tenha permitido revitalizar pontualmente o feminismo de base e a nível geral colocou uma ferramenta para dar voz a milhares de mulheres, surge inicialmente de super-estrelas do mundo de Hollywood.
Há aqui dois riscos profundamente ligados entre si, que vou tratar de separar:
1. Existe um certo redescobrimento de alguns dos postulados do feminismo radical dos anos 70, no que se refere à violência sexual e sob o slogan de que é uma guerra (dos homens contra as mulheres, ao que as mulheres devemos responder). Isto, além da simplificação que implica, tem o perigo de derivar em respostas punitivas e de corte repressivo-autoritário, em um feminismo legalista que busque castigar o delito ao invés de transformar as bases estruturais das violências. A forma na qual se articulou a resposta social aos casos mais midiáticos de violência sexual parece nos advertir neste sentido. Talvez o caso mais evidente seja o das mobilizações espontâneas e massivas contra a liberdade provisória dos cinco autores da violação em grupo de San Fermines, onde a crítica à Justiça e às considerações machistas dos autos confluía com setores mobilizados contra a figura mesma da liberdade provisória e por um endurecimento legal das condenações.
2. A articulação de um discurso que privilegia e totaliza a vivência individual do ser mulher acima de outras realidades sociais diversas, negando a complexidade das experiências de opressão e impondo o mito da irmandade universal de mulheres (da sororidade como sentimento primário [5]) em prol daquelas que já ganharam o acesso ao espaço público e a os círculos de poder. Isto é: uma elitização do feminismo, autocentrado na identidade e nas lutas pela representação, que não dá resposta aos problemas das mulheres migrantes, racializadas, trabalhadoras ou procedentes do Sul Global, todas aquelas que não temos acesso à autopromoção individual nem à ascensão social, cujas condições de vida só podem melhorar mediante políticas que defendam a reprodução social, assegurem a justiça reprodutiva e melhorem as condições de trabalho.
Isto não significa que estes movimentos não sejam importantes, mas temos que ser capazes de nos movermos num equilíbrio entre a criação e a promoção de novos modelos de representação, com a entrada no cenário de mulheres fortes e capazes de constituir-se como referentes culturais (porque a representação sim importa) e um programa que nos inclua a todas. Neste sentido, a decisão tomada pela Comissão 8M no encontro estatal celebrado recentemente em Gijón, de dedicar uma parte importante do próximo encontro ao debate programático – o de reivindicações e conteúdos – parece apontar em um bom sentido. Porque este ato de colocarmos as mulheres no centro, este “Now the women” e “The future is female” tem necessariamente que passar por um empoderamento coletivo enfrentado e radicalmente distinto da ideia de empoderamento individual através do êxito pessoal que nos vende o neoliberalismo e que só é possível à custa da subordinação de outras mulheres.
Qual é, então, a chave?
O feminismo global desempenhou outras vezes um papel compensatório ou de distração para o neoliberalismo, que desdobra estratégias de “purple washing” ou de reconhecimento formal de direitos que escondem um aumento da desigualdade econômica no mundo. Reconhecer que os antagonismos de gênero, ao invés de constituir uma divisão primária, estão inseridos nas dinâmicas da reprodução social e formam parte de um sistema global em que se articulam e combinam com outros fatores, pode ajudar a jogar luz sobre as relações opressivas entre mulheres e as diferenças entre nós, algo para o que o feminismo radical não proporciona uma explicação adequada.
Nos encontramos não só em um momento de irrupção do movimento feminista mundial, mas também do que poderíamos chamar uma feminização do protesto. Desde o movimento “Stop Desahucios” [Parem os despejos] e as PAHs no Estado Espanhol, as mobilizações contra Trump nos Estados Unidos e contra Bolsonaro no Brasil, as ocupações ecologistas na França ou Alemanha, ou as lutas pela soberania alimentar e a defesa do território na América Latina e no sudeste asiático, os ataques sistemáticos contra a manutenção da vida, [etc], estão conduzindo as mulheres a enfrentar coletivamente as autoridades políticas, econômicas ou inclusive físicas (como a polícia e o exército), impulsionadas pela origem legítima das suas demandas e avançando a partir da experiência até níveis de consciência política mais desenvolvida.
O uso da consciência feminina como ferramenta analítica nos permite compreender o papel das mulheres como vanguarda estratégica nas lutas com um enorme potencial transformador ao redor do mundo. E isto ocorre enquanto, paralelamente, o movimento feminista se consolida como vetor mobilizador fundamental em muitos países, capaz de irromper em momentos de forte refluxo e de dissolução dos vínculos sociais portando intuições profundamente anticapitalistas.
Eis aqui, portanto, a chave: construir um feminismo que não fale só de feminismo, que ponha a reprodução da vida no centro e que leve o lema “nossas vidas valem mais que os seus lucros” até as suas últimas consequências. A campanha internacional pela greve feminista para o 8 de março nos fez revelar o enorme valor das mulheres (no sentido mais estritamente econômico) que nossa simples existência gera. Durante os últimos meses, o movimento internacional de mulheres ganhou o mérito de não ser mais um cúmulo de reivindicações setoriais, dotando-se de uma dimensão estratégica e de um certo horizonte de ruptura. Há, certamente, muitas outras coisas. As lutas pela redefinição das identidades e pelo acesso aos espaços simbólicos de poder são importantes enquanto garantias de visibilidade e potencializadoras de um tratamento justo, mas reduzir o movimento feminista a isto seria negar o seu potencial transformador.
Este o potencial que envolve atualmente o movimento feminista: a de enfrentar o todo. Que estes potenciais cheguem ou não a se desenvolver, constituindo-se como elementos de ruptura do funcionamento normal das coisas, dependerá entre outros fatores de nossa capacidade para empurrar nesse sentido.
3/11/2018
Julia Cámara, ativista feminista e militante do Anticapitalistas (Estado Espanhol)
Notas:
1/ Laia FACET: “Mujeres: sujeto estratégico”, Viento Sur, 11/08/2017, https://vientosur.info/spip.php?article12902
2/ Temma KAPLAN: “Conciencia femenina y acción colectiva: el caso de Barcelona, 1910-1918”, en James S. AMELANG y Mary NASH (eds.): Historia y género: las mujeres en la Europa moderna y contemporánea, 1990.
3/ Cinzia ARRUZZA y Lidia CIRILO: Dos siglos de feminismo, Sylone, 2018.
4/ Nancy FRASER: Fortunas del feminismo, Traficantes de Sueños, 2015.
5/ Julia CÁMARA: “Sororidad y conciencia femenina: qué hermandad de mujeres para qué propuesta política”, Viento Sur, 09/08/2017, https://vientosur.info/spip.php?article12891
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