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Contra o centralismo burocrático (Ernest Mandel)


Contra o centralismo burocrático

Ernest Mandel

Tradução de Pedro Barbosa


Fonte: Ernest Mandel, “Dos pasos adelante, dos pasos atrás” (1979)


A parte mais notável dos artigos de Althusser é a parte que se dedica a desvelar e denunciar a estrutura e o regime interno do PCF. Althusser não chama as coisas pelo seu nome. Mas é um nome que nós conhecemos muito bem, e que é necessário pronunciar em voz alta. Se chama centralismo burocrático e é algo que está nas antípodas do centralismo democrático.


Althusser desmonta de modo feroz os seus mecanismos: um aparato de [funcionários] permanentes completamente separado da classe trabalhadora e da sociedade civil, e que não tem outros meios de subsistência para além dos que extrai do próprio aparato. Uma direção que manipula a base por meio deste aparato e que garante sua própria sobrevivência através de cooptação por meio deste aparato. Um direito à “discussão” na base estritamente compartimentado em células ou seções locais, compartimentação intensamente reforçada pela regra da unanimidade (da “sociedade colegiada”) que os membros da direção utilizam em suas relações com a base. O mito do partido “que sempre tem razão” ou do “comitê central que nunca se equivoca” é o substrato ideológico da estrutura burocrática. Uma relação manipuladora – de exortação –, educadora em sentido único entre o partido e a classe trabalhadora, que justifica teoricamente a relação hierárquica e quase militar que existe entre o aparato e a base do partido.


Tudo isso está corretamente analisado e denunciado. Estas estruturas podem ser qualificadas como “estalinistas”, desde que não se limite por isso a apreensão das mesmas aos fenômenos derivados da degeneração democrática do Estado soviético, do PCUS e da Internacional Comunista. Pois trata-se, na realidade, de um mal muito mais extenso. Este mal tem um nome: burocracia operária, burocratização das grandes organizações de trabalhadores em geral. Basta apontar um fato recente: no congresso da Confederação Sindical Alemã (DGB) realizado em maio de 1978, no qual, apesar de tudo, aconteceram eventos importantes, 90% dos delegados eram permanentes! Este "parlamento do trabalho" era, na realidade, um parlamento de burocratas do trabalho.


Dois remédios


Contra este mal, há dois tipos de remédios. O primeiro é evocado por Althusser e é de natureza essencialmente política. Requer uma teoria e uma prática políticas diametralmente opostas às das burocracias estalinistas e reformistas, baseadas na desconfiança e no medo que sentem das massas trabalhadoras.


A emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores. O partido revolucionário de vanguarda é um instrumento indispensável para esta autoemancipação, mas em nenhum caso pode substituir a própria classe trabalhadora. Um partido que tenha um programa revolucionário correto está em posse de algo decisivo na luta de classes, já que este programa nada mais é do que a síntese de todas as lições extraídas das lutas de classe do proletariado do passado. Entretanto, estar em posse de um programa correto não previne nenhum partido da possibilidade de cometer erros políticos graves. Sua correta aplicação depende de numerosos fatores concretos, particulares e conjunturais. Além disso, surgem constantemente novos fenômenos que não foram previstos nas decisões programáticas.


Por esta razão, a relação “partido de vanguarda / classe” é muito mais complexa do que a simples relação “educador / educado”. O educador também precisa ser educado constantemente. E só pode ser educado através de uma prática correta no interior da classe, no curso da luta de classes. A única demonstração prática de que um partido tenha desempenhado de modo adequado sua função de vanguarda é o fato de que acabe por conquistar uma influência política predominante sobre camadas cada vez mais amplas da classe trabalhadora, até chegar o momento em que conquiste a hegemonia política sobre a maioria dos trabalhadores.


Pode-se assegurar que, no decorrer deste longo combate político, o partido terá aprendido tanto com a espontaneidade das massas e com a luta de classes mais elementar quanto terá dotado esta de uma série de concepções políticas mais gerais. Isto não significa, evidentemente, que seja necessário se adaptar de um modo oportunista a tudo o que pensa habitualmente a grande massa de trabalhadores, o que além do mais pode mudar rapidamente. Mas isto significa que é necessário prestar muita atenção ao que as massas pensam, e não ignorá-lo nem desvirtuá-lo.


Não há antídoto válido e duradouro contra o mal burocrático que não contenha estes elementos teóricos e políticos, reforçado por toda uma série de regras de segurança (estatutárias, constitucionais, materiais). Não vamos nos estender a respeito desta questão. No essencial, Marx e Lênin já a esclareceram o suficiente. Vamos nos limitar a acrescentar uma regra suplementar: a presença obrigatória, em todos os órgãos deliberativos e executivos das organizações de trabalhadores e do futuro Estado operário, de uma maioria absoluta de trabalhadores que exerçam tarefas produtivas, ou seja, que não são [funcionários] permanentes.


A segunda categoria de remédios contra o mal burocrático é de natureza mais estritamente organizativa. Tem a ver com as regras de funcionamento das próprias organizações de trabalhadores, ou seja, com as garantias da democracia operária no seu interior.


Neste sentido, o mínimo que se pode dizer é que Louis Althusser se mostra tímido. Depois de denunciar um mal profundo e institucionalizado, suas proposições são muito modestas: tribunas de discussão na imprensa comunista; direito a uma informação que circule horizontalmente, de modo contraditório, e que possibilite uma discussão realmente democrática. Evidentemente, concordamos com todas estas propostas, que são aplicadas como algo óbvio em todas as organizações da IV Internacional. Mas embora sejam propostas necessárias para garantir minimamente a democracia operária, não se pode dizer que elas sejam suficientes para fundamentá-la sólida e duradouramente. O que distingue o centralismo democrático do centralismo burocrático é a garantia e a prática do direito de tendência.


De fato, não existe uma organização efetivamente centralizada na qual a direção – e ainda mais uma direção que se apoie em um aparelho sólido – não desfrute de determinadas e inevitáveis vantagens centralizadoras. É ela que recebe as informações centralizadas. É ela que centraliza as experiências de atividade do partido. Os projetos de resolução ou de teses que circulam por todo o partido antes dos congressos ou das conferências nacionais. Constituem a base privilegiada de todas as discussões.


Em si mesmo, não há nada de errado em tudo isso. É inclusive um aspecto positivo, uma característica indispensável para o funcionamento de toda estrutura orgânica. Compreender a função objetiva desta centralização significa compreender que não se trata de um fenômeno de “organização”, e muito menos de um fenômeno “administrativo”, mas de uma necessidade social e política. O que esta centralização expressa é o esforço que os marxistas e os comunistas levam a cabo para superar a fragmentação da experiência dos trabalhadores em experiências isoladas, fábrica por fábrica, setor por setor, região por região... O interesse de classe, distinto do interesse de um determinado grupo ou categoria, só se revela nesta centralização da experiência e da atividade na luta de classes.


Mas só se podem colocar em marcha os mecanismos da centralização em benefício exclusivo e através do canal único da direção do aparato, ao mesmo tempo em que se conserva a funcionalidade objetiva e eficaz desta centralização do ponto de vista da luta de classes, se se adotar a absurda tese estalinista da infalibilidade da direção.


O direito das minorias


Pois bem, Louis Althusser rejeita com razão esta tese, considerando-a uma mistificação teórica. Toda a história concreta do movimento operário constitui, igualmente, uma demonstração de sua falsidade. Na medida em que a direção não elabora automaticamente a linha política correta com base nas informações centralizadas de que dispõe, o último argumento a favor do centralismo burocrático – o da eficácia – cai por seu próprio peso. Na medida em que a maioria pode se equivocar e a minoria pode ter razão, é útil ao partido que a minoria possa ter as mesmas possibilidades de influenciar os militantes, o mesmo acesso às informações, o mesmo direito que a direção de formular resoluções e submetê-las à votação nos congressos. Deste modo, o partido tem muito mais possibilidades de evitar os erros em que poderia incorrer ou de corrigi-los rapidamente uma vez que tenham sido descobertas suas causas principais.


O procedimento que acabamos de descrever constitui o mais essencial do que se entende por direito de tendência: o direito dos militantes de elaborar em comum plataformas, propostas políticas, projetos de resoluções alternativos aos da direção, independentemente da compartimentação existente entre células, localidades e regiões; o direito de submetê-los à discussão dos militantes e aos votos nos congressos por meio de sua difusão entre todos os membros do partido. Sem este direito, a supressão da compartimentação e a existência de tribunas de discussão não passarão de meros recursos acadêmicos. Não possibilitarão de forma alguma que os militantes de base e as minorias elaborem propostas alternativas às elaboradas pela direção. A direção mantém assim o monopólio da elaboração política, o que é absurdo se pensamos que ela também não detém o monopólio da verdade e do bom senso. O centralismo burocrático se reproduz de um modo mais ou menos automático. A igualdade de direitos dos militantes não está garantida, já que eles não têm o direito de se colocar em acordo para modificar a linha política, direito este que só os membros da direção têm.


O direito de tendência é contrário ao leninismo?


Muitas objeções têm sido feitas ao direito de tendência. Em primeiro lugar, alega-se que seria contraditório ao leninismo, já que, por iniciativa de Lênin, o 10º Congresso do PCUS proibiu a construção de frações. Na realidade, este episódio confirma o oposto do que é afirmado por aqueles que o utilizam como argumento. Pois se as frações são proibidas dezoito anos após a criação do partido, isso significa que durante todo esse tempo foram toleradas e que sua proibição só pode ser explicada pela aparição de certas circunstâncias excepcionais. Na realidade, toda a história do bolchevismo está atravessada pelas lutas de grupos, de tendências e de frações. A isso adiciona-se que o 10º Congresso proibiu as frações, mas não o direito de tendência.


Naquele mesmo congresso do PCUS em que as frações foram proibidas, Lênin, opondo-se a uma emenda da Riazanov, que pretendia proibir também as tendências, ou seja, as plataformas políticas comuns de militantes de diferentes células, seções e regiões do partido – incluindo os membros dos órgãos de direção – que eram submetidas às decisões dos congressos, defendeu vigorosamente o direito de tendência:


“Não podemos privar o partido e os membros do CC de apelar para o partido sobre uma questão fundamental que suscita divergências. Não vejo como poderíamos fazer isso! Este congresso não pode estabelecer condições ao próximo congresso a respeito do método de eleição. E se fosse levantada uma questão como, por exemplo, a conclusão da paz em Brest-Litovsk? Você pode garantir que tais questões não seriam levantadas? Naturalmente. Mas sua resolução propõe que não se realizem eleições com base em programas. Não creio que estejamos em condições de proibir isso... se as questões suscitam divergências fundamentais, podemos impedir que sejam submetidas ao julgamento de todo o partido? Não! É uma proposta excessiva, impraticável. Proponho que não seja aceita” (Lenin, “Oeuvres”, vol. 32, p. 274).


Já anteriormente, no decorrer do mesmo debate sobre a proibição das frações, Lênin havia lembrado aos dirigentes da Oposição Operária:


“O órgão central do partido publicou 250.000 exemplares do programa da Oposição Operária”. Sopesamos em todos os seus aspectos, de todas as maneiras, votamos com base neste programa, convocamos um congresso para fazer um balanço desta discussão política...” (Ibidem, página 267).


Não é isso o que constitui a essência do direito de tendência ao que nos referimos: o direito que têm os membros do partido que não estejam de acordo com a direção de elaborar livremente, fora de qualquer compartimentação, propostas políticas alternativas? O direito de submetê-las, por meio de boletins internos e da imprensa do partido, a todos os membros do partido? O direito de vê-las discutidas antes e durante os congressos no mesmo nível que os projetos de resolução da maioria da direção atual? O direito de que a direção seja eleita mais ou menos proporcionalmente com base no apoio de que goze cada tendência no congresso?


Por outro lado, neste mesmo 10º Congresso do PCUS, produziram-se sérias divergências sobre a questão sindical e várias plataformas diferentes foram submetidas ao Congresso. O Congresso elegeu o novo Comitê Central proporcionalmente aos votos de cada plataforma. O que confirma que neste congresso o direito de tendência foi confirmado e não suprimido.


Digamos também que inclusive a proibição das frações foi concebida pelo 10º Congresso como uma medida temporária e excepcional, e não como uma nova norma estatutária. A prova disso é que o PCUS não solicitou à Internacional Comunista que difundisse e generalizasse essa proibição.


Outra objeção ao direito de tendência alega que a constituição das tendências permanentes leva a que “o partido não seja mais um conjunto de diversidades, [mas] de rancores, mesmo de ódios tenazes, eternamente dispostos para se vingar... Não se discute mais, dissimula-se, guarda-se ciosamente na memória a frase que o outro pronunciou e que revela seu verdadeiro modo de pensar. Estou exagerando? Não. Pensemos nos acertos de contas entre as diferentes tendências tal ou qual seção socialista, ou certas organizações de esquerda” (Henri Malberg, “Le mécanisme de la tendance”, em "France Nouvelle", 5 de junho de 1978).


Há uma boa dose de verdade nesta crítica das tendências permanentes e ossificadas. Mas não é verdade que possa ser aplicada ao exercício normal do direito de tendência, mas só ao seu abuso.


Quanto tempo duram as tendências


Normalmente, uma tendência é formada por ocasião de um congresso ou de uma mudança de conjuntura importante na luta de classes. E se dissolve quando o congresso toma uma decisão, deixando que a maioria ponha à prova sua linha política, sem que isso signifique que não possa voltar a ser constituída diante do anúncio do próximo congresso para reiniciar o debate com base nas novas experiências acumuladas. Desta forma, a dialética “liberdade de discussão para determinar a linha, reexame da linha à luz da experiência acumulada / disciplina na ação comum” pode se desenvolver plenamente e chegar a ser realmente construtiva.


A existência de tendências permanentes é um sintoma de mal-estar. É necessária uma regulamentação do direito de tendência. Nosso movimento se orgulha de ter respeitado o direito de tendência de uma maneira exemplar. Neste sentido é uma exceção quase única dentro do movimento de trabalhadores. A recente dissolução das duas principais tendências que existiam dentro da IV Internacional demonstra que somos capazes de apreender todos os aspectos do problema. Isto não significa que atuemos sempre do modo mais perfeito possível nem que temos resposta para tudo. Estamos sempre dispostos a discutir abertamente com os camaradas da oposição comunista, com todas as correntes do movimento de trabalhadores.


Mas também estamos convencidos de uma coisa. Que a negação, a limitação ou a supressão do direito de tendência é mil vezes mais perigosa e prejudicial do que o pior dos abusos em sua aplicação. Quando Henri Malberg afirma descaradamente que o direito de tendência não permite a escolha clara de opções políticas nem a elaboração rápida de uma linha correta, ele está formulando um monstruoso sofisma. Será que ele ousaria afirmar que, se o direito de tendência tivesse sido respeitado, não poderia ter sido evitada a linha do “social-fascismo”, apresentada com tanta obstinação – durante cinco anos – no PC alemão e que tanto contribuiu para a vitória de Hitler em 1933? Será que ele ousaria afirmar que se o direito de tendência tivesse sido respeitado dentro do PCUS, mesmo assim Stálin teria sido capaz de manter por vinte e cinco anos uma política agrícola tão errônea que, por causa dela, em 1953 a produção per capita de vários produtos animais e vegetais era inferior à de 1916?


O centralismo burocrático, a manipulação das organizações operárias por parte do aparato de [funcionários] permanentes ou por parte dos mandatários (como acontece na social-democracia), a asfixia da livre discussão e da iniciativa que permitiria aos militantes escolher entre linhas alternativas, são elementos tão nocivos que devem ser combatidos impiedosamente. Se não se consegue eliminá-los, não é possível impulsionar a luta de classes nem levar a classe trabalhadora à vitória. Esta é, em todo caso, uma conclusão sobre a qual concordamos com Louis Althusser. Para nós, o direito de tendência é uma condição prévia indispensável para o sucesso deste combate.

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